"Existe
um número muito maior de pessoas saudáveis do que de pessoas doentes no mundo e
é importante, para a indústria farmacêutica, fazer com que as pessoas que são
totalmente saudáveis pensem que são doentes.
Existem muitas maneiras de se
fazer isso.
Uma delas é mudar o padrão do que se caracteriza como doença.
Outra
é criar novas doenças".
Reproduzo na integra um entrevista de Adriane Fugh-Berman ao blog Viomundo.
publicado em 29 de agosto de 2013 às 18:15
porHeloisa Villela, de Nova York, especial para o Viomundo
- Existe um número muito maior de
pessoas saudáveis do que de pessoas doentes no mundo e é importante, para a
indústria farmacêutica, fazer com que as pessoas que são totalmente saudáveis
pensem que são doentes. Existem muitas maneiras de se fazer isso. Uma delas é
mudar o padrão do que se caracteriza como doença. Outra é criar novas doenças.
Parece teoria conspiratória. Mas a
declaração da médica e professora Adriane Fugh-Berman é baseada em anos de pesquisa a
respeito das práticas da indústria farmacêutica e da facilidade com que ela
manipula os médicos, usados não apenas para vender remédios, mas também para
promover doenças. No momento, ela está pesquisando algo que descobriu faz pouco
tempo. Representantes de fabricantes de material cirúrgico muitas vezes são
vistos dentro de salas de operação “ajudando” os cirurgiões. “Que
relacionamento é esse?”, quer saber a pesquisadora.
Adriane Fugh-Berman é formada pela
escola de medicina da Universidade Georgetown com especialização em medicina
familiar. Militou em uma organização voltada à saúde da mulher e ouviu muitos
desaforos de médicos, há duas décadas, quando reclamava que não existiam
estudos comprovando a necessidade de tratamentos hormonais para mulheres na
menopausa. Existia, isso sim, risco — como mais tarde ficou comprovado. O
tratamento hormonal aumentou em muito os casos de câncer de mama e a prática
mudou. Antes disso, ela ouviu muitas críticas em conferências e seminários
médicos.
Quando
embarcou no estudo e no programa de educação a respeito da relação dos médicos
com a indústria farmacêutica, ela esperava uma reação ainda pior. Professora
adjunta do Departamento de Farmacologia e Fisiologia da Georgetown, ela recebeu
uma verba para estruturar o programa voltado para a educação dos médicos e para
expor as práticas de marketing da indústria, os métodos que ela emprega para
influenciar a prescrição de medicamentos. Tarefa espinhosa.
Filha de um casal ativo nos anos
sessenta, nos protestos contra a guerra do Vietnã, a médica e professora
Adriane Fugh-Berman abraçou a oportunidade e criou um blog bem sucedido, com
informações e denúncias de gente que trabalhou na indústria farmacêutica e
aprendeu as técnicas empregadas para conquistar e influenciar os médicos. Nos
últimos dez anos, ela viu resultados do trabalho nos Estados Unidos. Mas alerta
que a indústria farmacêutica vê o Brasil, a China e a Índia como os principais
mercados para a expansão da venda de remédios.
Fugh-Berman escreveu vários artigos
mostrando que a indústria seleciona profissionais ainda em formação, nos
chamados Cursos de Educação Continuada (CME). Vendedores bem preparados
identificam possíveis formadores de opinião nos centros médicos das
universidades: médicos, enfermeiros e assistentes. Eles são paparicados.
Recebem
presentes, atenção, são convidados para jantar. Depois de uma checagem, são
escolhidos os que poderão falar em nome da indústria e servir aos propósitos
mercadológicos. Enquanto falam o que a indústria quer ouvir e divulgam, no
setor, a visão das empresas, continuam recebendo todos os privilégios. Assim,
as farmacêuticas vão comprando acesso aos profissionais que podem prescrever e
promover remédios.
Viomundo
– Como, quando e por que você lançou o blog Pharmedout, da Universidade Georgetown, do
qual é diretora?
AFB
– Originalmente, fomos financiados com dinheiro de uma punição. A Warner
Lambert, que era uma subsidiária da Pfizer, foi processada pelos 50 estados
americanos mais o Distrito de Columbia por causa da propaganda de um composto
que aqui nos EUA se chama Gabapentin.
É um remédio para convulsões, para
epilepsia, que estava sendo vendido e promovido como sendo um remédio para
depressão e bipolaridade, dor muscular, tudo…
Houve
um acordo na justiça a respeito da propaganda ilegal desse remédio. [Nota do Viomundo: Em 2004, a Pfizer foi obrigada a pagar
US$ 430 milhões pela propaganda fraudulenta do remédio, vendido com o nome de
Neurontin].
Os
procuradores estaduais decidiram usar parte do [dinheiro do] acordo para
financiar esforços de educação de médicos e do público a respeito das
propagandas da indústria farmacêutica. Acho que eles financiaram 26 centros
médicos universitários para criar modelos educativos.
Nós recebemos financiamento por dois
anos e tivemos melhores resultados do que os outros projetos e somos o único
projeto que continua sobrevivendo. Ao menos dos que não existiam antes disso.
Existem uns dois que já funcionavam antes.
Eu
venho de um ativismo na área de saúde. Trabalhei com um grupo chamado Rede de
Saúde da Mulher que não recebe dinheiro algum da indústria e já tinha
experiência com essa história de tentar promover mudança social sem ter
orçamento…
Produzimos vídeos com gente que
trabalhou na indústria, escrevemos análises de artigos acadêmicos, divulgamos
material educacional na internet e não recebemos mais dinheiro desde 2008.
Viomundo
– Como estão sobrevivendo?
AFB
– Estamos sobrevivendo de doações individuais e organizamos uma conferência
todo ano. Pedimos algum dinheiro para a escola e cobramos uma taxa de
inscrição, apesar de deixarmos todo mundo que não tem dinheiro entrar de graça
porque tem muitos estudantes e eles não pagam nada, por exemplo.
Levantamos um pouquinho de dinheiro com
a conferência e algumas doações da escola. Por exemplo, a verba para estudar a
relação entre cirurgiões e representantes dos fabricantes de material cirúrgico
que ficam dentro da sala de operações ajudando os cirurgiões e ninguém sabe
nada a respeito dessas relações e como começaram.
Ganhamos
um dinheiro do departamento de filosofia da Georgetown para essa pesquisa. Mas
a maior parte da nossa verba vem de contribuições individuais. Temos apenas um
funcionário remunerado. Eu não ganho nada do projeto e temos voluntários.
Quando o dinheiro acabou, em 2008, ninguém saiu. Todo mundo ficou no projeto. E
continuaram fazendo trabalho voluntário nos últimos cinco anos.
Viomundo
– Em um de seus artigos você diz que a indústria farmacêutica promove doenças e
não apenas a venda de remédios. Você pode explicar e dar exemplos do que está
falando?
AFB
– Existe um número maior de pessoas saudáveis do que de pessoas doentes no
mundo e é importante para a indústria fazer com que as pessoas que são
totalmente saudáveis pensem que são doentes. Existem muitas maneiras de se
fazer isso.
Uma
delas é mudar o padrão do que caracteriza uma doença. Essa é uma área muito
vasta e interessante. O padrão para diagnóstico de pressão alta e diabetes e
colesterol alto caiu ao longo dos anos.
Viomundo
– Para incluir mais gente nessas categorias de doentes?
AFB
– Exatamente. Quando eu estava na escola de medicina, uma pressão de 12 por 8
era considerada perfeita. Era o alvo. E agora é considerada pré-hipertensão.
Viomundo
– Como aconteceu essa mudança?
AFB
– Existem comitês que fazem as recomendações para essas mudanças e eles estão
cheios de gente que recebe dinheiro das grandes empresas farmacêuticas.
Por exemplo, o Programa Nacional de
Educação sobre o Colesterol é supostamente independente e assessora o governo a
respeito da maneira de administrar o colesterol. O
comitê que decidiu reduzir as metas tinha uma única pessoa com menos de três
conflitos de interesse com os fabricantes de remédios de colesterol. Não sei
nem se era zero, mas menos de três!
Obviamente,
qualquer pessoa tomando decisões a respeito de remédios para um hospital ou um
país não deve ter nenhum conflito de interesse com nenhum fabricante de
remédios.
Outra forma de fazer com que pessoas
saudáveis pensem que são doentes é expandir a categoria da doença ou até mesmo
criar doenças.
Por
exemplo, restless leg syndrome (síndrome da perna que não para). É uma doença
real, neurológica, raríssima.
Mas
foi redefinida de forma que se você está agitado durante a noite, pode ser
diagnosticado com essa doença.
Outro
exemplo é a doença da ansiedade social. É bom notar que a psiquiatria é a
profissão mais suscetível a diagnósticos questionáveis porque todos os
diagnósticos são subjetivos.
Dependem muito da cultura e não existe
nenhuma prova, nenhum exame para comprovar a existência da doença. Por isso é
um alvo.
Uma
das categorias que talvez tenha sido criada é essa doença da ansiedade social
que antes chamávamos de vergonha.
Outra
que foi criada é osteopenia, ou baixa massa óssea, que agora é considerada
precursora da osteoporose e a osteoporose é apenas um fator de risco. Não é uma
doença, é uma indicação de risco para quedas e fratura de ossos.
Então a osteoporose é um fator de risco
para um fator de risco de uma doença. E a osteopenia é um fator de risco para
um fator de risco para um fator de risco.
Viomundo
– E eu aposto que existe um remédio para isso…
AFB
– Claro. E os remédios mais usados podem aumentar o risco de fraturas se forem
tomados por mais de cinco anos!
O
Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) também seria um
exemplo de algo que provavelmente existe, mas agora qualquer criança que não se
comporta na sala de aula é diagnosticada com TDAH e medicada.
Outra
coisa que foi inventada é TDAH em adultos. Antes só existia em crianças. Agora
também existe em adultos e assim podem continuar tomando remédios o resto da
vida.
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Nicotina para sempre, mas não no cigarro |
Existe também um esforço para
classificar o vício em nicotina como uma doença porque as empresas que vendem
produtos para ajudar a parar de fumar… as empresas de seguro de saúde só cobrem
os gastos com esses produtos por dois meses porque eles devem te ajudar a parar
de fumar. Depois de dois meses você parou de fumar e pronto. Mas
existe um movimento das empresas que fabricam esses produtos para classificar
esse vício como uma doença para que os seguros cubram o custo do uso desses
produtos pelo resto da vida.
Assim,
eles tentam provar para os fumantes que eles não podem parar e que é melhor
substituir o cigarro por um desses produtos. Talvez seja melhor mesmo usar um
substituto da nicotina do que fumar, mas quem está tomando essa decisão são as
empresas farmacêuticas que usam formadores de opinião na comunidade médica. E
essas decisões não são baseadas em Ciência.
São tomadas apenas porque empresas
biomédicas poderosas garantem que as opiniões que são favoráveis a elas calem
as opiniões contrárias.
Metads
das pessoas que consegue eliminar o cigarro com sucesso simplesmente param de
fumar. E a indústria farmacêutica odeia isso. Quer fazer com que as pessoas
acreditem que necessitam da ajuda dela. E que não podem parar sozinhas ou
talvez não possam nunca parar.
É um
recado horrível não somente para os consumidores, mas para os profissionais de
saúde dizer: “Seus pacientes não conseguem parar de fumar”. Porque isso é o que
você tenta primeiro. Se isso não funcionar, então você usa um substituto. Mas
alguns desses produtos também têm efeitos adversos.
Viomundo
– Você diria que no fim do dia o dinheiro é a causa de todos esses problemas? A
ganância?
AFB
– Acho que o mais importante é separar a indústria farmacêutica da educação, da
regulamentação e das decisões a respeito de que remédios e tratamentos devem
ser cobertos.
Não
se pode permitir que a indústria se envolva com a educação, que influencie a
regulamentação e participe dos comitês que decidem que remédios são cobertos.
Eles
podem apresentar argumentos e, se tiverem informações, podem apresentar para o
comitê. Mas as pessoas que participam desses comitês não podem ter conflitos de
interesse.
E
uma das armadilhas é o seguinte conceito: “Eu não tenho conflito de interesses com
essas empresas em particular”. Se estou avaliando um remédio, talvez eu tenha
uma relação com a empresa B, mas
estamos avaliando um produto da empresa A. Então
não é um conflito de interesse.
Isso
é uma tremenda armadilha por vários motivos. Um deles é que promover um remédio
é muito mais do que divulgar os benefícios daquela droga. Pode ser também
divulgar informações negativas a respeito de outros remédios. Divulgar
informações negativas a respeito de dietas e exercícios. E não está mencionando
o remédio da empresa com a qual tem relações.
O
que muita gente não sabe e é muito importante é que a promoção de um remédio às
vezes começa dez anos antes dele chegar ao mercado. Essa droga pode nem ter
sido testada em humanos ainda, mas a empresa já está tentando plantar a semente
na cabeça dos médicos de que a doença é um grande problema, que não é
brincadeira.
“TDAH destrói vidas. Síndrome da
ansiedade social destrói vidas. É uma epidemia trágica. Muito mais séria e
abrangente do que você pensa”.
Isso
começa anos antes. Pessoas são pagas para falar sobre isso. Quando a droga
chega ao mercado você diz “graças a Deus surgiu um remédio para essa doença
incurável da qual ouço falar há anos!”.
Viomundo
– Por que a população em geral e os médicos, em particular, caem nessa
armadilha tão facilmente e com tanta frequência?
AFB
– Olha, é mais difícil enganar a população do que os médicos. É muito fácil
enganar os médicos. Por vários motivos. Ao menos nos EUA, os médicos, em geral,
vêm das classes mais altas da sociedade. Nunca venderam nada. Não têm
vendedores na família. Não têm familiaridade com técnica de vendas.
Às
vezes conversamos com estudantes que têm vendedores na família e eles
identificam claramente as técnicas de vendas. Os médicos não reconhecem. Não
apenas vêm das classes mais altas, mas também são ingênuos.
Aparentemente,
nos Estados Unidos, e não sei se isso se aplica também ao Brasil, os médicos
são mais suscetíveis a golpes financeiros. Eles são inteligentes. São muito
bons nas provas de múltipla escolha. Mas não têm esperteza. São crédulos. Para
mim foi muito interessante descobrir isso.
Viomundo
– Isso não é apenas uma maneira de desculpá-los facilmente? Eles não deveriam
ter mais responsabilidade sobre o que estão fazendo?
AFB – Mas eles não são expostos… Ok,
nós fazemos uma apresentação chamada “Porque o almoço é importante” e
trabalhamos nela com muito cuidado. Usamos psicologia social para ajudar os
médicos a perceber esses truques. Uma das coisas que fizemos na apresentação
foi, numa das primeiras vezes que a testamos, espalhei pessoas na plateia para
anotar os comentários que os médicos faziam. Pegamos os comentários mais comuns
e transformamos em slides. Depois usamos esses slides com outras plateias e
teve um efeito impressionante.
Um
deles, por exemplo, dizia: “Você está errado, os representantes das indústrias
farmacêuticas são meus amigos!” ou “eu sou muito inteligente para ser comprado
por uma fatia de pizza e você está sugerindo isso!”
Pusemos
esses comentários nos slides e depois explicamos porque estavam errados. Os
médicos ficaram chocados. Realmente chocados! Porque mostramos o que estavam
pensando. Foi muito eficaz.
As pessoas saíram das nossas
apresentações jurando que jamais receberiam um representante da indústria
novamente. Nunca iriam a um jantar pago pela indústria novamente. Ninguém gosta
de ser enganado e quando você descobre que está sendo enganado você fica com
raiva. E eles não estavam com raiva de nós e sim dos fabricantes de remédios.
A
grande maioria dos médicos quer fazer o melhor para seus pacientes. Existem
alguns que fazem qualquer coisa por dinheiro. Mas eles são a minoria. A maioria
quer fazer o melhor para os pacientes. Mas eles não se dão conta de que as
fontes das informações que recebem são contaminadas, que estão sendo
manipulados pela indústria de diversas maneiras.
Que
a indústria controla a informação sobre remédios apresentados em encontros
médicos, em publicações médicas, em toda fonte de informação da qual eles
dependem. E não gostam quando descobrem isso.
Viomundo
– Como é possível mudar tudo isso se a indústria controla a pesquisa e o
desenvolvimento de novos remédios, os testes em humanos, tem um dos maiores
lobbies no Congresso e assim controla as leis escritas a respeito dela. Como
escapar dessa situação?
AFB
– Acho que é preciso promover mudanças em várias frentes. Algumas coisas
mudaram um bocado, nos EUA, nos últimos cinco a dez anos. Ainda existe muito a
fazer, mas acho que boa parte é expor os problemas.
Trabalhos
como o da ProPublica divulgando
na internet os pagamentos para médicos, de forma simples e acessível. A
divulgação obrigatória [do que os médicos recebem da indústria] é importante.
Mas não é suficiente.
Algumas
mudanças tem que vir da profissão médica mesmo. Ela tem que recusar a relação
com a indústria em nível individual ou no nível das sociedades médicas que
aceitam dinheiro da indústria. As sociedades médicas têm que parar de receber
dinheiro.
Os
médicos têm que recusar presentes e temos que tirar todas as pessoas que tenham
qualquer conflito de interesse com a indústria farmacêutica dos órgãos
decisórios sobre riscos e benefícios de remédios.
Tem
que haver reformas legislativas também. Você mencionou a pesquisa, que é muito
importante. Nos EUA, há 30 anos, o Instituto Nacional de Saúde financiava 70%
de todas as pesquisas biomédicas. Agora, é a indústria que financia 70% das
pesquisas biomédicas. Isso é um problema.
Precisamos de mais financiamento do
governo. Testes financiados pelo governo às vezes descobrem que remédios
antigos são melhores do que os novos. A indústria nunca vai financiar esse tipo
de estudo. A indústria financia vários estudos e só publica aqueles dos quais
gosta, o que faz sentido de um ponto de vista de negócios.